Tango de desencarceramento: aprender com os resgates nos desportos motorizados

2020-05-29 12:27

Extrication Tango: Learning from Motorsports Rescue

Quando comecei a trabalhar no Corpo de Bombeiros há cerca de 15 anos, os carros que andavam nas estradas tinham uma qualidade completamente diferente dos veículos atuais. O método de desencarceramento estava menos desenvolvido e as ferramentas que utilizávamos demoravam mais tempo e eram mais pesadas. A abordagem de desencarceramento que aprendi assentava na máxima ‘‘demora o tempo necessário’’: a vítima que está encarcerada é como vidro e, definitivamente, não queremos magoar ou causar danos na vítima. Felizmente, na atualidade, as ferramentas de resgate estão mais desenvolvidas (mais rápidas e fáceis de manusear), e as nossas táticas evoluíram para táticas mais centradas no tempo, com o objetivo de aumentar as hipóteses de recuperação da vítima.

No entanto, à medida que escrevo isto, sei que muitas pessoas ainda tratam as vítimas da mesma forma que tratam o vidro: com muito, muito cuidado. Em muitos casos, esta também seria a minha abordagem, mas e se a vida da pessoa que ficou presa dentro daquele veículo estiver dependente do tempo? De que forma o seu Corpo de Bombeiros está preparado e treinado para uma situação como esta? Como é que comunica com a sua própria equipa e com outros elementos em incidentes que implicam o envolvimento de vários departamentos? Que escolhas faz para acelerar o processo de desencarceramento?

Resgate em desportos motorizados

Tenho tido a sorte de poder observar e aprender com as FIA Medical/Safety Teams, bem como com a AMR INDYCAR Safety Team. O que vi em ambas as organizações foi que no desencarceramento e/ou extração* de uma vítima presa num veículo a rapidez é, frequentemente, essencial. Claro que a principal preocupação é o estado de saúde da vítima, mas parar uma corrida ou ter uma corrida a um ritmo lento também é um ponto importante a considerar. As equipas de resgate querem trabalhar de forma rápida para libertar a pista e continuar a corrida. 

*Desencarceramento ou extração

Nos desportos motorizados, retirar um piloto do carro é conhecido como desencarceramento ou extração. O desencarceramento feito pelo Corpo de Bombeiros e Salvamento envolve, quase sempre, a utilização de ferramentas (hidráulicas) de resgate, ao passo que nos desportos motorizados, na maioria das vezes, isso já não acontece. Como tal, neste blogue falamos de extração quando o piloto é levantado do carro e de desencarceramento quando estão envolvidas ferramentas de resgate.

Quando passei um fim de semana a acompanhar a equipa da AMR INDYCAR Safety Team na pista de Pocono, discutimos a possibilidade de diferentes cenários e treinamos durante algumas horas como abordar um incidente. Como comunicar? Qual o estado de saúde do piloto? É necessário fazer uma extração manual ou o piloto consegue sair pelo próprio pé? Este procedimento é sempre orientado por um médico, cujo papel é fazer a triagem do piloto e determinar o método de extração. 

Quando se opta pela extração manual, todos os membros da equipa têm o seu papel e vão trabalhar o mais rápido possível ao mesmo tempo que tratam a vítima como vidro. As equipas responsáveis pela segurança da pista estão devidamente formadas e certificadas para as suas funções. 

Manual extraction

A primeira vez que vi uma equipa de segurança realizar uma extração manual, pareciam seis pessoas a dançar uma versão complicada do tango. Todos os membros da equipa tinham as suas posições à volta do carro, todos tinham tarefas específicas e quando começaram a levantar o piloto do carro todos se moviam e desempenhavam o seu papel em sintonia. Era como se seguissem uma melodia inaudível que os guiava pelos passos de dança deste tango de desencarceramento.

Resgate no Corpo de Bombeiros

Agora, de volta ao Corpo de Bombeiros. Tendo em mente o que aprendi com a nossa parceria com a FIA, comecei a ver com outros olhos a forma como fazemos as coisas no Corpo de Bombeiros. E se conseguirmos melhorar alguns métodos para, digamos, ‘‘ouvir a melodia do tango de desencarceramento’’? 

Há muitos anos que usamos a Abordagem de Equipa, e diria que este ainda é um processo de trabalho atual e válido que nos orienta num cenário de resgate num acidente rodoviário. No entanto, ao observar a comunicação e os diferentes cenários que podemos encontrar, podemos querer fazer alguns passos opcionais, ou melhor ainda: ter alguns passos adicionais para criarmos os nossos próprios passos de dança.

Vou apresentar dois exemplos, a título de reflexão, quando discutimos pontos a acrescentar na Abordagem de Equipa.

Exemplo 1: Comunicação - SAMURAI LASER 

Os nossos amigos da ATACC no Reino Unido criaram o acrónimo SAMURAI LASER há alguns anos. Significa:

 Modo

  Velocidade

 Rota

 Self (Individual) Urgent (Urgente) (20 min) Linear (Linear)
 Assisted (Assistido) Rapid (Rápido) (<5 min)  Angled (Angular)
 Manual (Manual) Immediate (Imediato) (<1 min) Side (Lateral)
   Emergency (Emergência)
   Relocate (Deslocar)

O acrónimo ajuda a determinar o modo de extração, a velocidade e a rota. Mas, acima de tudo, ajuda-nos a comunicar num cenário com diversos departamentos. Quando todos estão cientes do plano, é muito mais fácil determinar os próximos passos e estar preparado. Um acrónimo como SAMURAI LASER seria um bom complemento à Abordagem de Equipa de forma a facilitar a comunicação.

ATACC - SAMURAI LASER

Exemplo 2: Estabilização - Considerar opções

No seguimento da Abordagem de Equipa, assim que o cenário do acidente de trânsito tiver sido avaliado, o próximo passo é estabilizar o veículo. Analisemos com maior atenção as opções que temos. Por exemplo, se chegarmos a um cenário em que o condutor está ferido, mas não está preso, o médico determinou que a vítima pode sair sozinha (Self [Individual]; Urgent [Urgente]; Side [Lateral]).  Nesse caso, é necessário que estabilizemos o veículo?

Ou quando a porta está presa e queremos retirar a porta para que a vítima possa sair sozinha (Assisted [Assistido]; Urgent [Urgente]; Side [Lateral]). Existe a necessidade de ter um veículo completamente estabilizado? É necessário remover o vidro? Tal como escrevemos no nossa publicação anterior no blogue, lidar com vidros é mais do que parti-los. 

A estabilização deve ser sempre considerada e bloquear as rodas para impedir movimentos indesejados do carro é a minha primeira abordagem. Mas, estabilizar um veículo por completo, demora tempo. Tempo esse que podemos poupar e utilizar na prestação de cuidados à vítima. Obviamente, quando precisamos de uma plataforma sólida para apoiar os sistemas hidráulicos durante o desencarceramento, são necessários calços e blocos. Mas, uma vez, pode perguntar-se: Precisamos de estabilidade total ou é suficiente ter uma estabilidade parcial para completar a nossa ação e libertar a vítima de forma rápida?

Da segurança nas pistas para a segurança nas estradas

É fascinante ver os passos de dança coordenados das equipas de resgate dos desportos motorizados, em especial quando libertam uma vítima de um cockpit aberto de um carro de corridas. Contudo, é óbvio que o motivo nunca é agradável. O foco num desencarceramento orientado por aspetos médicos e a falta de tempo, a falta de necessidade e de espaço para a estabilização do veículo ensinaram-me que no Corpo de Bombeiros também podemos debater abertamente se, e até que ponto, precisamos de estabilizar um veículo.

É escusado dizer que se um veículo está virado de lado ou capotado, e que provavelmente se irá mover ou rolar quando começarmos o desencarceramento, em primeiro lugar, precisamos de estabilizar o cenário. A segurança dos nossos elementos da equipa de socorro e da vítima sobrepõe-se a tudo! Mas, usando o que aprendi nos resgates nos desportos motorizados, sempre que treino no meu Corpo de Bombeiros e Salvamento ou quando treino clientes em qualquer parte do mundo, gosto de debater os seus pontos de vista sobre estabilização, gestão do tempo e comunicação.

Por isso, os dois exemplos que dei - um acrónimo para ajudar nas comunicações no cenário de resgate e examinar as opções de estabilidade total ou não - são, como disse, opções de reflexão destinadas a encorajá-lo a descobrir as suas opções para renovar ou melhorar o seu desempenho. 
Questões que podemos fazer a nós mesmos: Que método preciso de utilizar para comunicar os passos no plano de desencarceramento? Tenho um acrónimo ou uma frase mais rápida e eficaz que faz com que todos os elementos da equipa de socorro trabalhem em conjunto e saibam o que fazer? A minha equipa considera diferentes opções para a estabilização do veículo num cenário de resgate? Modifiquei passos da Abordagem de Equipa ou acrescentei os meus próprios passos?

Aguardo ansiosamente as vossas ideias nos comentários.

Ronald de Zanger
Holmatro Rescue Consultant

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